Esta obra, singular até mesmo para os obscuros textos alquímicos, é considerada por estudiosos e adeptos como a “Bíblia dos alquimistas” e “pérola máxima da coleção alquímica”.
Todo este entusiasmo é justificado por cultores da arte de Hermes pelo fato de que em suas quinze pranchas estarem supostamente revelados – atrás de uma elaborada alegoria composta essencialmente de imagens – detalhes factuais para a confecção bem sucedida da Pedra Filosofal, um artefato de propriedades “mágicas”, capaz, entre outras coisas, de transformar cobre em ouro.
Considerado um verdadeiro compêndio de toda uma tradição espiritual e literária, o Livro Mudo Alquímico, é uma referência até mesmo fora do universo dos chamados textos herméticos pela qualidade iconográfica de suas pranchas, consideradas algumas das mais belas na história da alquimia.
O livro mudo alquímico é assim conhecido pela quase ausência de textos, ou do modo verbal de representação como conhecemos no ocidente – herdado dos filósofos gregos – que prescinde do uso de imagens visuais, baseado exclusivamente no discurso escrito com palavras.
No entanto seu autor supre esta aparente falta com maestria e oferece detalhes sobre operações de laboratório de maneira muito mais clara que vários escritos alquímicos compostos somente de texto, em uma linguagem absurdamente complexa, responsáveis pela expressão “conteúdo hermético”, referente informações de difícil compreensão.
Esta quase ausência de textos reforça a importância que cada linha, letra e número carregam em cada uma das pranchas. Revelam também indícios do método de exposição dos filósofos herméticos, do qual o Mutus Liber possivelmente seja o maior exemplo, baseados em uma linguagem discursivo hieroglífica, onde o todo é maior que a soma de suas partes e a imagem, não é colocada como mero coadjuvante, mas apresenta um papel central.
Nos inúmeros desenhos de homens; mulheres; instrumentos de laboratório; deuses e deusas; animais e anjos das pranchas estão expostas referências a um complexo sistema de linguagem que engloba diversos campos do conhecimento humano. Este “sistema” conhecido como a Filosofia Hermética, foi forjado durante séculos nas mais diversas regiões do globo em experiências no laboratório de alguns dos maiores sábios da humanidade.
A ousadia proposta pelo seu autor de condensar pictoricamente “toda a filosofia hermética” utilizando-se deste sistema tão peculiar de linguagem, concebido como uma amalgama da escrita signo grega e da escrita imagem egípcia pode ser uma inspiração para designers da informação que diariamente são confrontados com o desafio de reduzir extensos corpos de texto em imagens que auxiliem e facilitem sua compreensão – da maneira mais simples e intuitiva possível.
“Além de ensinar pela arte como operar a matéria prima, sua maior fonte de singularidade reside em ser mudo, sendo possivelmente o único livro conhecido, desde o apogeu da civilização egípcia, que se propõe condensar uma sabedoria hermética e que chega, inclusive, a sugerir um caminho para o desenvolvimento espiritual, praticamente sem utilizar a palavra. Manual de laboratório, obra de arte, tratado de filosofia hermética, guia de espiritualidade, relato de um sonho, enigma expresso em imagens; a soma de tudo isso transforma o Mutus Liber, de fato, num livro incomum.” (CARVALHO, 1998.) Pág 13
Conta-se que a primeira edição esteve perdida por séculos do público, sendo os poucos exemplares comercializados – sempre a peso de ouro – encontrados somente em antiquários ou livrarias especializadas. Não existem quaisquer notícias das placas de cobre originais utilizadas na produção, foi Eugène Canseliet que encontrou uma cópia do livro, na cidade de La Rochelle e mandou fotografar as imagens impressas na obra com o objetivo de reproduzi-las com mais fidelidade. Portanto a reedição das pranchas originais do Mutus Liber aconteceu somente em 1968, trezentos e dez anos depois do seu lançamento oficial.
A edição mais famosa no cenário internacional, inclusive as utilizadas por Carl Gustav Jung em seus breves comentários sobre o livro, foi realizada em 1702, pelo médico Jean-Jacques Manget, de Genebra. Esta edição excluiu da narrativa a Advertência ao Leitor, presente no início da obra, assim como o Privilégio do Rei que finaliza o volume original. Porém, as modificações mais importantes são às presentes na primeira prancha, aonde o R da palavra LIBER, foi deslocada de sua posição que sugeria um enigma anagramático, aparecendo normalmente ao lado do E, ao contrário da edição de 1677, onde está separada.
A edição do Mutus Liber, empregada nesta pesquisa são reproduções do livro de José de Carvalho (Mutus Liber, o livro mudo alquímico, 1998 – São Paulo), que utiliza das pranchas originais publicadas pela La Rochelle em 1677, apresentando na contra página também, em miniatura a edição modificada de Manget.
Carvalho alerta o leitor que em uma obra alquímica, estes meros detalhes são de fundamental importância e as pequenas modificações de seu conteúdo podem distorcer o sentido geral das imagens.
O mesmo descaso aconteceu em outras pranchas que também sofreram pequenas alterações, levando em conta a natureza hermética do livro, conclui-se que seu editor ou não conhecia a importância de cada detalhe para uma obra alquímica, ou decidiu conscientemente ignorar este fato.
Um exemplo desse labirinto hermético são as possíveis soluções para o anagrama sugerido pelo R deslocado de seu contexto. Carvalho apresenta algumas das sugestões, presentes nas abordagens dos estudiosos Canseliet e Miro Gabriele, adicionando duas próprias às existentes, todas descritas resumidamente a seguir.
Para Canseliet, todas as palavras da primeira linha formam uma só frase: MUTUS LIBE R IN QUO TAMEN, compondo o seguinte anagrama: SUM BETULI R, IN QUO TAMEN, que siginifica “Sou o ar do betilo, contudo falo”, Carvalho considera essa interpretação “um tanto forçada”, observando que o R em latim, foi lido com a pronúncia em francês (ér, formando o homofônico de air). O betilo, explica Canseliet, seria uma rocha negra caída do céu, devorada por Saturno, com poderes oráculares (possivelmente uma referência a matéria prima). O ar, seria uma referência ao principio volátil, ou o mercúrio.
Mino Gabriele também discorda de Canseliet, propondo um anagrama invertendo apenas as palavras na extremidade da frase, o que diminuiria a gravidade da intervenção de Manget. MUTUS LIBER IN QUO TAMEN, transforma-se então em, SUM UT LIBER INQUO TAMEN – “Eu (Mutus Liber) sou como o Livro (Bíblia) no qual (Jacob) dorme”. Gabriele então conclui: “Altus testemunha que é o seu livro o texto sagrado do Filósofo hermético, como é a Bíblia para o cristão.” (GABRIELE, Commentario sul Mutus Liber, pág. 65-66 em CARVALHO, 1998 pág. 77).
As duas colaborações de Carvalho para este enigma diferem em seu nível de complexidade. A primeira, muito mais simples, segue o seguinte raciocínio:
MUTUS LIBER: portanto, o livro mudo ou o livro que não fala.
LIBER: quer dizer também livre, liberto, desvencilhado, independente. Neste contexto o liberto seria o próprio leitor, ou adepto.
MUTUS: mudo, silencioso, que não fala.
MUTUS LIBER: O liberto que não fala, ou o Adepto Silencioso.
Uma interpretação perfeitamente condizente com o contexto da obra. Todavia, Carvalho também observa que é uma contradição chamar um livro conhecido por mostrar informações de maneira mais objetiva que seus similares na literatura, de mudo. Assim como, que não se deve ignorar o formato discurso hieroglífico hermético, onde as imagens não possuem caráter meramente ilustrativo e estão carregadas por um sistema de alegorias muito especifico, trazendo informações sobre processos de laboratório, ingredientes alquímicos e até mesmo das relações espirituais entre o leitor e a Grande Obra, que é como os alquimistas chamavam seu trabalho.
Deste modo esta primeira interpretação de Carvalho, sugere que o titulo do livro pode ser uma alusão a própria didática alquímica, aonde o que é ensinado com todas as palavras não possui nenhum valor, sendo necessário que o leitor faça o livro falar.
A segunda solução para o anagrama proposta dialoga com a tradição mitológica presente nas pranchas e faz uso da leitura mito hermética utilizada nas interpretações proposta por Carvalho em seu livro, apontada como muita mais críptica, como o próprio hermetismo filosófico.
LIBER: no Dicionário Mito Hermético de Pernety, livre é designado como epíteto do deus Baco.
“Filho de Júpiter e Sêmele, filha de Cadmo. A fábula diz que ele nasceu das cinzas de sua mãe, como Esculápio. Ele nos é representado alado, com chifres, uma cabeça de touro, masculino e feminino, jovem e velho, barbudo e imberbe. Todas as historias que se contam dele não são outra coisa, no sentir dos Filósofos Espagíricos, que uma alegoria das operações de sua arte, que eles denominam por excelência a Grande Obra… Pintamo-lo às vezes alado para designar o momento de sua volatilização; carregando uma cabeça de boi ou de bode, porque esses animais lhe foram consagrados como a Osíris; masculino e feminino, porque a matéria dos Filósofos, ou seu Rebis, é andrógina; jovem e velho, porque essa matéria parece rejuvenescer durante as operações” (PERNETY, Dictionnaire Mytho-Hermétique, apud CARVALHO, 1995, pág 53-54)
Baco seria uma representação do Mercúrio Filosófico, ou da Rebis.Resultando na seguinte tradução mito hermética:
MUTUS LIBER: Baco Mudo; ou O Mercúrio Filosofal em Silêncio.
Carvalho apóia esta interpretação no fato conhecido que os alquimistas acreditavam que somente quem fosse chamado por uma “revelação divina” teria sucesso na obra, outra menção a este aspecto espiritual seria a escada presente na primeira prancha, aonde dois anjos tocam cornetas, despertando um jovem adepto adormecido. Assim sendo, também outra hipótese possível para o enigmático anagrama, uma referência do lado mais espiritual da obra.
Toda esta discussão acerca de um mero caractere tipográfico deslocado pode assustar o leitor não familiarizado com o misterioso mundo dos alquimistas, da mesma maneira que pode atrair os mais curiosos para uma tentativa de desvendar seus mistérios.
A primeira edição comentada do Mutus Liber foi lançada em 1914, por Émile Nourry e Paul Dérain. Este exemplar contém comentários do livreiro Pierre Dujols, auto intitulado, Megaphon, ou a voz do mago. Apesar de considerado impreciso e cheio de lacunas, abriu as portas para as interpretações do livro mudo alquímico, assim como definiu seu ponto de partida.
Por fim foi Jean Laplace em 1979, responsável pela edição publicada em Milão pela Editora Arché, que produziu uma tiragem de luxo e limitada com uma coleção de pranchas coloridas do Mutus Liber do séc. XVIII, depositadas na biblioteca do Congresso de Washington. A terceira prancha é completamente diferente das de Altus e Manget, indicando a participação de outro artista.
O fato mais curioso envolvendo o livro mudo alquímico aconteceu na metade do século passado, quando o cientista alquimista Armand Barbault, abandonou a cidade e foi viver no campo como um verdadeiro adepto em busca do ouro potável, a matéria prima com a qual se produz o elixir da longa vida. Utilizando o Mutus Liber como principal referência, Barbault recolheu durante as madrugadas entre 1948 e 1960, o orvalho celeste – conforme ilustra a prancha número cinco do Mutus Liber – e através das operações clássicas dos alquimistas conseguiu produzir um liquido dourado, possuidor de propriedades medicinais testadas em laboratórios da Alemanha, denominados Weleda A.G e Wala-Heilmittel, os quais, entretanto não conseguiram determinar sua composição. Os adeptos mais entusiasmados não demoraram em citar a experiência de Barbault como uma prova de outro estado da matéria, que comprovaria vários preceitos dos filhos de Hermes.
Apesar de pouco explorado dentro da Academia, o estudo dos princípios alquímicos pode proporcionar novos horizontes para as mais diversas áreas do conhecimento humano, dando ênfase ao Design, a sua linguagem insólita, porém altamente significativa, estimula novos estudos sobre o desenvolvimento da imagem e sua elaboração de sentido, elucidando sobre as mais variadas maneiras da representação visual. Sendo assim, a compreensão desta linguagem hermética exposta principalmente através de imagens pode auxiliar na busca por modos eficientes de sintetizar grandes corpos de textos em representações cada vez mais intuitivas, ou se necessário, enigmáticas. Em resumo, seu peculiar método de linguagem imagética, a complexidade de seu conteúdo, o intrigante contexto histórico no qual está inserido e suas constatações empíricas dos princípios ativos alquímicos, fazem desta obra um contagiante objeto de estudo que merece ser levado em consideração. Mas para penetrar neste fantástico sistema imaginativo, o ponto de partida é conhecer quem são os filósofos herméticos, o que acreditavam e como se configurou seu característico modo de linguagem que até hoje não possui comparativo.